No início do mês, o mundo foi surpreendido com a notícia de que uma partida de futebol na Indonésia terminou com mais de uma centena de mortos e outras centenas de feridos. 1 A tragédia é a segunda maior relacionada ao futebol, superada apenas pela tragédia de Lima, quando, em 1964, 328 torcedores morreram no Estadio Nacional.

Segundo relatos, torcedores do Arema FC indignados com a derrota para o seu rival Persebaya Surabay invadiram o gramado do Estádio Kanjuruhan e hostilizaram jogadores e dirigentes. A polícia tentou conter a invasão com bombas de gás lacrimogêneo, lançadas em direção às arquibancadas e ao próprio gramado, o que provocou pânico nos torcedores para fugir do gás.

A fuga caótica dos torcedores, combinado com portões fechados ou muito estreitos, e superlotação do estádio culminaram na tragédia, com a maioria das vítimas sendo pisoteadas ou asfixiadas. Cumpre salientar que não houve conflito entre as torcidas, uma vez que esta partida contava somente com a torcida do Arema FC, que detinha o mando de campo.

Diante desta tragédia, nos resta questionar, quem são civilmente responsáveis por estes fatos perante os torcedores? Os clubes? A confederação? O Poder Público? E se a tragédia ocorresse no Brasil? De quem seria a responsabilidade?

De forma bem sucinta, temos que as equipes do Arema FC e Persebaya Surabay são filiadas à Associação de Futebol da Indonésia, a qual é filiada à Confederação Asiática de Futebol, que por sua vez é filiada à FIFA e, portanto, ambos os clubes integram o Sistema Federativo e Associativo do Futebol.

Neste sentido, por estarem sujeitos ao Sistema Federativo, os clubes e demais players estão subordinados ao Código Disciplinar da FIFA. 2 Analisando este documento, mais precisamente seu artigo 16, temos que os clubes são responsáveis pelos comportamentos inapropriados de seus torcedores, vejamos:

"16 Order and security at matches

  1. Host clubs and associations are responsible for order and security both in and around the stadium before, during and after matches. They are liable for incidents of any kind and may be subject to disciplinary measures and directives unless they can prove that they have not been negligent in any way in the organisation of the match. (...)
  2. All associations and clubs are liable for inappropriate behaviour on the part of one or more of their supporters as stated below and may be subject to disciplinary measures and directives even if they can prove the absence of any negligence in relation to the organisation of the match:

a) the invasion or attempted invasion of the field of play;

b) the throwing of objects;

(...)"

Ademais, embora não seja de observância obrigatória para competições não organizadas pela FIFA, o artigo 19, 'b' do Regulamento de Segurança de Estádios da FIFA proíbe expressamente o uso de armas de foto e bombas de gás lacrimogêneo:

"19 Pitchside stewards

In order to protect the players and officials as well as maintain public order, it may be necessary to deploy stewards and/or police around the perimeter of the field of play. When doing so, the following guidelines must be considered:

(...)

b) No firearms or "crowd control gas" shall be carried or used."

Desta forma, não nos resta dúvida sobre a responsabilidade desportiva neste caso, ou seja do Clube Arema FC e da Associação de Futebol da Indonésia.

Dando sequência à análise, segundo os relatos da tragédia e diante do posicionamento do próprio Governo da Indonésia, nos parece que estamos também diante de um despreparo e omissão do Poder Público no que diz respeito às medidas adotadas no dia da tragédia em questão. Desta forma, Regência de Malang, proprietária do Estádio Kanjuruhan e responsável pela força policial envolvida, também seria responsável pelas centenas de vítimas.

Mas, entrando no mérito deste artigo, e se a tragédia tivesse ocorrido em território brasileiro, quem seria responsabilizado?

Seguindo a mesma lógica do Sistema Federativo descrito acima, os clubes, federações locais, a Confederação Brasileira de Futebol e os demais players também estariam submetidos ao Código Disciplinar da FIFA. Portanto, seriam responsabilizados desportivamente com fundamento no já mencionado artigo 16.

Além disso, o artigo 67-A do Regulamento Geral de Competições da CBF, 3 considera os clubes responsáveis por atitudes dos seus torcedores, independentemente se o clube é mandante ou visitante:

"Art. 67-A - Os Clubes, sejam mandantes ou visitantes, são responsáveis por qualquer conduta imprópria do seu respectivo grupo de torcedores nos termos do art. 16 do Código Disciplinar da FIFA.

Parágrafo único - A conduta imprópria inclui, particularmente, tumulto, desordem, invasão de campo, violência contra pessoas ou objetos, uso de laser ou de artefatos incendiários, lançamento de objetos, exibição de slogans ofensivos ou com conteúdo político, ou a utilização sob qualquer forma, de palavras, gestos ou músicas ofensivas."

Na esfera da Justiça Desportiva, temos que o clube mandante também pode ser punido administrativamente pela infração ao artigo 213 do Código Brasileiro de Justiça Desportiva:

"Art. 213. Deixar de tomar providências capazes de prevenir e reprimir:

I — desordens em sua praça de desporto;

II — invasão do campo ou local da disputa do evento desportivo;

III — lançamento de objetos no campo ou local da disputa do evento desportivo.

PENA: multa, de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais).

  • 1º Quando a desordem, invasão ou lançamento de objeto for de elevada gravidade ou causar prejuízo ao andamento do evento desportivo, a entidade de prática poderá ser punida com a perda do mando de campo de uma a dez partidas, provas ou equivalentes, quando participante da competição oficial."

A título de comparação com a tragédia na Indonésia, o evento mais similar ocorrido no Brasil nos últimos anos foi o rebaixamento do Coritiba em 2009, em que o gramado do Couto Pereira foi invadido pela torcida descontente. Neste caso, a equipe do Coritiba4 foi punida com a pena máxima do artigo 213.

Na legislação nacional, o artigo 14 do Estatuto do Torcedor (Lei Federal nº 10.671/2003) responsabiliza a entidade desportiva detentora do mando de campo e seus dirigentes pela segurança do torcedor:

"Art. 14. Sem prejuízo do disposto nos arts. 12 a 14 da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, a responsabilidade pela segurança do torcedor em evento esportivo é da entidade de prática desportiva detentora do mando de jogo e de seus dirigentes, que deverão:

I – solicitar ao Poder Público competente a presença de agentes públicos de segurança, devidamente identificados, responsáveis pela segurança dos torcedores dentro e fora dos estádios e demais locais de realização de eventos esportivos;"

Importante apontar que o artigo 19 do Estatuto do Torcedor fixa o regime de responsabilidade objetiva em casos de prejuízos ao torcedor oriundos de falhas de segurança nos estádios e torna solidariamente responsáveis por tais prejuízos: (1) as entidades responsáveis pela organização da competição, (2) os dirigentes da organizadora, (3) a agremiação mandante, e (4) os dirigentes da equipe:5

"Art. 19. As entidades responsáveis pela organização da competição, bem como seus dirigentes respondem solidariamente com as entidades de que trata o art. 15 e seus dirigentes, independentemente da existência de culpa, pelos prejuízos causados a torcedor que decorram de falhas de segurança nos estádios ou da inobservância do disposto neste capítulo."

Interessante inovação legislativa, de 2010, passou a prever regime de responsabilidade objetiva às torcidas organizadas pelos danos provocados no local do evento, suas intermediações e trajeto de ida e volta da concentração, bem como as tornou solidariamente responsáveis pelos danos causados pelos seus associados ou membros:

"Art. 39-B. A torcida organizada responde civilmente, de forma objetiva e solidária, pelos danos causados por qualquer dos seus associados ou membros no local do evento esportivo, em suas imediações ou no trajeto de ida e volta para o evento."

Diante da especificidade da norma mais nova relativa à responsabilidade objetiva pelos danos causados unicamente pelas torcidas organizadas, exsurge a pergunta: caso o dano tenha sido causado por uma torcida organizada, subsiste a responsabilidade objetiva do mandante e da entidade organizadora da competição?

Considerando as regras de hermenêutica jurídica de que "a lei especial prevalece sobre a lei geral" e que "a lei posterior prevalece sobre a lei anterior", nos parece defensável a interpretação de que o legislador pretendeu restringir a responsabilidade pelos danos causados pela torcida organizada somente a esta organização e aos seus membros autores dos atos ilícitos. Por outro lado, como não haveria conflito com a redação do art. 19 do Estatuto do Torcedor, acima, e a interpretação restringiria o acesso do torcedor à Justiça, também é defensável a interpretação de que as torcidas organizadas respondem solidariamente com o clube mandante e a entidade organizadora da competição pelos danos causados por membros de torcidas organizadas decorrentes de falhas de segurança.

Em relação à participação do Poder Público na tragédia, entendemos que também há responsabilidade objetiva do Estado (ex vi do art. 37, §6, da CF/88) caso os danos ao torcedor tenham sido provocados pela atuação dos agentes policiais, como parece ter ocorrido na Indonésia.

Nesta hipótese de dano causado por agente policial, prevalece o entendimento de que o clube mandante somente responderia de forma solidária se o dano tivesse ocorrido dentro do estádio, de modo a atribuir a responsabilidade pelos danos sofridos pelo torcedor apenas ao Poder Público.6

À luz das reflexões acima, se o caso concreto tivesse ocorrido no Brasil, nos parece inquestionável que todos os envolvidos seriam objetiva e solidariamente responsáveis pelos danos sofridos pelos torcedores, eis que (1) o clube mandante e a entidade organizadora falharam em prover um ambiente seguro aos seus torcedores; (2) membros da torcida organizada invadiram o gramado e deram início ao tumulto; e (3) agentes policiais lançaram bombas de gás lacrimogêneo contra os torcedores nas arquibancadas, de forma desproporcional.

Footnotes

1 Segundo informações mais recentes, foram 132 mortes (sendo 33 crianças), 26 vítimas com ferimentos graves e 596 vítimas com ferimentos leves e moderados. Cf. https://en.antaranews.com/news/254841/kanjuruhan-tragedyvictim-count-reaches-754 e https://en.antaranews.com/news/252965/33-children-dead-in-kanjuruhan-tragedyministry . Acesso em 13.10.2022.

2 https://digitalhub.fifa.com/m/1b1c85f7bbc8b3e6/original/i8zsik8xws0pyl8uay9i-pdf .pdf. Acesso em 13.10.2022.

3 https://conteudo.cbf.com.br/cdn/202201/20220119213940_390.pdf . Acesso em 13.10.2022. 4 http://www.espn.com.br/noticia/108132_stjd-reduz-pena-do-coritiba-de-30-para-10-partidas-na-serie-b-do-brasileiro . Acesso em 13.10.2022.

5 Nesse sentido, destacamos o entendimento do STJ sobre o tema: "5. Em caso de falha de segurança nos estádios, as entidades responsáveis pela organização da competição, bem como seus dirigentes responderão solidariamente, independentemente da existência de culpa, pelos prejuízos causados ao torcedor (art. 19 do EDT). O art. 14 do EDT é enfático ao atribuir à entidade de prática desportiva detentora do mando de jogo e a seus dirigentes a responsabilidade pela segurança do torce dor em evento esportivo" (STJ, 3ª Turma, rel. Min. Nancy Andrighi, REsp 1924527/PR, j. 15.06.2021).

6 Exemplo: "Estatuto do torcedor que estabelece a responsabilidade dos clubes com mando de campo pela organização do evento esportivo e visa garantir a segurança, acessibilidade e higiene para os torcedores dentro do estádio, não podendo a entidade desportiva ser responsabilizada por fatos ocorridos fora do complexo desportivo, em via onde a segurança deve ser provida pelo poder público. Entendimento jurisprudencial que é pacífico no sentido de afastar a responsabilidade dos clubes por eventos danosos ocorridos fora do estádio, após o término da partida. Dispositivos do Estatuto do Torcedor que visam proteger os consumidores, mas não colocam - e nem poderiam colocar - os clubes na qualidade de garantidores universais" (TJRJ, 4º Câmara Cível, rel. Des. Marco Antonio Ibrahim, AC nº 0124380-44.2010.8.19.0001, j. 28.04.2021)

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