Seis dos onze ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) votaram para que a falta de pagamento do ICMS seja considerada crime, e não apenas inadimplência fiscal. Na prática, o devedor poderá ser processado criminalmente e ficará sujeito a ser preso por não pagar o tributo, caso a maioria seja mantida até o fim do julgamento. Hoje, quem deixa de recolher o imposto pode responder apenas a cobrança judicial em um processo cível.

A condição para que a irregularidade seja tratada como crime é que seja comprovado o dolo do devedor — ou seja, a intenção de cometer o ilícito. Estariam preservadas, portanto, empresas que não puderem pagar o imposto por dificuldades financeiras e não tenham tido a intenção de sonegar.

O entendimento do Supremo não tem efeito direto sobre o dia a dia do consumidor. O que muda é a forma como a irregularidade é tratada pelas autoridades. Para especialistas, a decisão até agora dá margem para incertezas sobre em que condições pode haver processo criminal e cria insegurança jurídica.

A conduta está prevista na lei 8.137, de 1990, que define os crimes contra a ordem tributária. O ilícito é "deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos".

A chamada apropriação indébita tem pena de seis meses a um ano de prisão, mais pagamento de multa. Segundo dados encaminhados ao Supremo, em 2018 a dívida declarada e não paga de ICMS em 22 estados era de mais de R$ 12 bilhões.

Julgamento interrompido

O julgamento foi interrompido e deve ser retomado na próxima semana. Até agora, votaram pela criminalização da conduta o relator, ministro Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, Luiz Fux, Edson Fachin, Rosa Weber e Cármen Lúcia. Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio Mello discordaram dos colegas. Dias Toffoli e Celso de Mello ainda votarão.

O processo em julgamento é um recurso de lojistas de Santa Catarina denunciado pelo Ministério Público estadual por crime contra a ordem tributária por não ter repassado aos cofres públicos, no prazo determinado, o valor referente ao ICMS em diversos períodos entre 2008 e 2010. Segundo a defesa, a simples inadimplência fiscal não caracteriza crime, pois não houve fraude, omissão ou falsidade de informações ao fisco.

Na prática, quando é feita a comunicação ao Fisco de que existe a dívida, o comerciante passa a ser considerado inadimplente. O entendimento é diferente nos tribunais: alguns consideram que o devedor também pode ser processado criminalmente; outros, que a única possibilidade é o poder público cobrar a dívida.

A decisão do STF pacificará essa interpretação. Embora o julgamento seja apenas de um caso específico, a interpretação da mais alta corte do país abrirá o caminho para que outros tribunais adotem a mesma tese.

Barroso explicou que, na prática, o consumidor arca com o custo do imposto, já que o comerciante embute o ICMS no preço final. Portanto, se a empresa não repassa o valor ao Fisco, comete crime.

— Se o sujeito furtar uma caixa de sabão em pó no mercado, o Direito Penal é severo. Penso que quando há crime tributário, deve ser igualmente sério. Tratar diferentemente furto da sonegação dolosa faz parte da seletividade do brasileiro, que considera que crime de pobre é mais grave do que crime de rico — afirmou Barroso.

Para Moraes, a sonegação fiscal no país é tratada de forma condescendente com o devedor.

— Existem duas formas de se combater a sonegação fiscal: a brasileira e a correta. No Brasil, nem se pedir pra ser preso um sonegador vai conseguir — disse, completando: — É mais arriscado jogar na roleta em Las Vegas do que sonegar imposto no Brasil.

Segundo Fux, a sonegação fiscal no país causa mais prejuízo que a corrupção:

— Está introjetada na cultura do povo essa possibilidade de sonegar, como se isso não fosse tão grave quanto a corrupção.

Os três ministros que ficaram no time minoritário ressaltaram que esse tipo de dívida só pode ser criminalizado se ficar comprovada fraude.

— A norma penal repele responder com tipo penal pagamento de dívida. Só é permitido em caso de fraude — disse Gilmar Mendes, completando: — A intervenção criminal só se justifica na medida que houver fraude pelo agente. Na falta de tal elemento, resta cristalino o vilipêndio da criminalização do mero inadimplemento.

Tributaristas veem insegurança jurídica

O posicionamento do Supremo foi criticado por tributaristas. A maior dúvida é sobre como as autoridades vão diferenciar sonegadores de empresas que deixam de pagar imposto por outros motivos, como dificuldade financeira ou erros no emaranhado tributário.

— A decisão preocupa em termos de segurança jurídica . Quem vai querer investir num país onde não se sabe exatamente se um erro na interpretação da nossa complexa legislação tributária pode dar cadeia? — critica o tributarista Luiz Gustavo Bichara.

A advogada Ariane Guimarães, sócia do Mattos Filho, pondera que até mesmo a indicação do Supremo sobre criminalizar apenas devedores contumazes, que têm a intenção de sonegar, é incerta. Hoje, ao menos dois projeto de lei buscam definir esse tipo de devedor.

— O conceito de devedor contumaz está em discussão no Congresso Nacional. Isso traz uma insegurança para o país — pontua.

Há ainda preocupação sobre até que ponto o Supremo age dentro dos limites do judiciário, avalia Felipe Richter, sócio da área tributária do Veirano Advogados:

— Considerando crime, o Supremo terá aplicado indevidamente o direito penal para um tema eminentemente tributário. Além disso, terá legislado, já que inexiste o tipo penal. A falta de pagamento de imposto declarado não pressupõe automaticamente fraude, omissão ou falsidade nas informações prestadas.

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