No dia 23 de janeiro de 2020, entrou em vigor a Lei nº 13.964 de 24 de dezembro de 2019, amplamente conhecida como "Lei Anticrime". A Lei Anticrime trouxe uma série de alterações legislativas em normas de natureza criminal, como o Código Penal, Código de Processo Penal, Lei de Execuções Penais, Lei do Crime Organizado, Lei de Lavagem de Dinheiro, dentre outras.

Dentre as inúmeras alterações mencionadas, uma que tem atraído enorme atenção por todas as esferas do Judiciário no curto tempo de vigência da lei é, sem dúvidas, a inclusão do instituto do acordo de não persecução penal, também conhecido como "ANPP", no Código de Processo Penal, em seu art. 28-A.

Nas últimas décadas, o Brasil tem adotado progressivamente a justiça negocial para infrações penais, por meio de institutos como a transação penal, a suspensão condicional do processo e o acordo de colaboração premiada.1 Nessa linha, a mudança legislativa trouxe uma nova figura de justiça negocial na qual o Ministério Público poderá deixar de oferecer denúncia contra o investigado que tenha confessado "formal e circunstancialmente" a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, se o investigado concordar em cumprir certas condições, tais como a renúncia de bens e proveitos de crime, além de prestar serviços comunitários.

Embora o ANPP não possuísse lugar na legislação brasileira antes da promulgação da Lei Anticrime, na prática e especialmente durante o desenrolar da Operação Lava-Jato, o Ministério Público já firmava acordos de semelhante envergadura. Para tal propósito, o Conselho Nacional do Ministério Público se valia da então vigente Resolução nº 183/2018, que alterou a Resolução nº 181/2017 e que passou a prever a figura do instituto negocial.2

Conforme ventilado, apesar do pouco tempo de vigência do ANPP, ele já tem sido objeto de inúmeras discussões doutrinárias e jurisprudenciais. Dessa forma, passado um ano de vigor da Lei Anticrime, o presente ensaio terá o condão de analisar a postura adotada pelo judiciário brasileiro, em todas as suas esferas, o instituto da ANPP e o relevante aspecto da possibilidade da retroatividade de sua aplicação, mesmo depois de oferecida a denúncia.

Antes de adentrarmos nas discussões relacionadas ao aspecto mencionado, exporemos um importante levantamento realizado pelo Ministério Público Federal no final do ano de 2020, no qual será possível compreender para quais situações o ANPP tem sido mais utilizado durante o último ano. Isso também nos permitirá compreender a principal finalidade que se tem atribuído ao instituto negocial.

6.1 O ANPP em 2020: Os dados e a posição do Ministério Público Federal sobre a Finalidade do Instituto

Em 17 de setembro de 2020, o Ministério Público Federal publicou em seu site3 estudo de sua 2ª Câmara de Coordenação e Revisão no qual apontou que haviam sido realizados, desde maio de 2018 – data na qual passou a se utilizar do instituto negocial, 5.053 acordos de não persecução penal.4 No entanto, desse total, 3.892 acordos haviam sido realizados no ano de 2020, aumento que, reconhecidamente, deve-se à vigência da Lei Anticrime.

Ademais, o estudo apontou que os crimes com maior incidência do ANPP, na esfera federal, são: i) contrabando ou descaminho (1.165); ii) estelionato majorado (802); iii) uso de documento falso (469); iv) moeda falsa (285); e v) crimes contra o meio ambiente e o patrimônio genético. O estudo também apurou que o ANPP havia sido utilizado em todos os Estados brasileiros,além do Distrito Federal, o que demonstra uma recepção nacional do instituto.

Na ocasião da publicação do estudo, foi salientada por alguns dos membros do Ministério Público Federal a opinião de que o ANPP se configura como um importante instrumento de justiça restaurativa, "na medida em que garante sanções necessárias à reprovação e prevenção do crime praticado por meio de uma resolução consensual entre acusação e defesa". A essa posição, tendemos a nos filiar.

Além disso, ainda segundo o Ministério Público Federal, tem-se pretendido com o ANPP evitar encarceramentos desnecessários, dar uma resposta mais célere para a sociedade ante o cometimento de um crime e focar os esforços do Ministério Público na repressão a crimes mais graves, sem deixar de lado condutas de leve e média gravidade.5

Uma vez tecidas breves considerações sobre as situações mais usuais do instituto e a finalidade que se pretende atingir com o ANPP, é possível avançar para a abordagem da problemática eleita anteriormente.

Footnotes

1 "O processo penal brasileiro é regido pelo formalismo dos atos processuais. Entretanto, a grande demanda ao Poder Judiciário e sua consequente lentidão para a resolução de processos promoveu a necessidade de se buscar maior eficácia na atuação concreta do sistema penal". MARTINELLI, João Paulo Orsini; SILVA, Luís Felipe Sene da. Mecanismo de justiça consensual e o acordo de não persecução penal. In.: MARTINELLI, João Paulo Orsini; BEM, Leonardo Schmitt de (Orgs.). Acordo de não persecução penal. 2. ed., Belo Horizonte/São Paulo: D'Plácido, 2020, p. 54.

2 O artigo 11 da Resolução nº 183/2018 passou a dar a seguinte redação ao artigo 18 da Resolução 181/2017: "Não sendo o caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor ao investigado acordo de não persecução penal quando, cominada pena mínima inferior a 4 (quatro) anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça a pessoa, o investigado tiver confessado formal e circunstanciadamente a sua prática, mediante as seguintes condições, ajustadas cumulativa ou alternativamente". Para acesso: https://www.cnmp.mp.br/portal/images/Resolucoes/Resoluo-183. pdf. Acessado em 17 de março de 2021.

3 http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/mpf-investe-na-justica-consensual-e-ultrapassa-5-mil-acordos-de-nao-persecucao-penal. Acessado em 16de março de 2021.

4 http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/ANPPate17092020v2.pdf. Acessado em 16 de março de 2021.

5 Nesse mesmo sentido, sobre os avanços da justiça consensual no Brasil: "Nesse caminho, Scarance Fernandes complementa que 'a aceitação dessa mudança veio precedida da separação das infrações em dois grandes grupos: as infrações leves e as graves. Passa-se a sustentar que não se justifica para as primeiras um processo demorado, e que, solucionadas de maneira rápida por via conciliativa, sobraria tempo para os órgãos de persecução penal poderem se dedicar com maior eficácia ao combate das segundas". MARTINELLI, João Paulo Orsini; SILVA, Luís Felipe Sene da. Mecanismo de justiça consensual e o acordo de não persecução penal. In.: MARTINELLI, João Paulo Orsini; BEM, Leonardo Schmitt de (Orgs.). Acordo de não persecução penal. 2. ed., Belo Horizonte/São Paulo: D'Plácido, 2020, p. 54.

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Originally Published by Compliance aplicado ao Direito

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