Resumo: Uma mesma conduta pode gerar consequências jurídicas diversas, em especial um ato ilícito – que pode ter efeitos penais e civis. A ação civil ex delicto é aquela na qual a vítima pretende a reparação de um dano que é oriundo de uma infração penal. Embora as ações possuam naturezas distintas, não se pode dizer que não haverá algum tipo de interação entre elas, quando se está diante de um mesmo fato gerador de responsabilidade. No sistema jurídico brasileiro, a ação penal e a ação civil são consideradas independentes, mas, em determinados casos, a ação penal produz efeitos perante o juízo civil.

Mais do que isso, o legislador autorizou que (i) as ações sejam processadas em paralelo, assumindo o risco de decisões dissonantes e possível condenação do Estado e (ii) o juiz penal fixe um valor mínimo de indenização, de forma que a sentença penal condenatória poderá gerar um título executivo líquido a ser executado perante o juízo cível. Ainda que a vítima possa pleitear a complementação da indenização em uma ação civil ex delicto, a execução civil do valor mínimo fixado na sentença penal estará desde já autorizada.

Abstract: A single conduct may give rise to different legal consequences, especially an unlawful act - which may have criminal and civil effects. The civil lawsuit (so-called ex delicto) is the one intended to repair damages caused by a criminal offense.

Although the two lawsuits have different natures, it cannot be said that there will not be interaction between them, when is the same fact that creates liability. In the Brazilian legal system, criminal and civil actions are considered independent, but in certain cases, the criminal lawsuit produces effects before the civil court

More than that, the legislator authorized that (i) the actions can be processed in parallel, assuming the risk of dissenting decisions and possible liability of the State and (ii) the criminal court establishes a minimum amount of compensation, so that the criminal conviction may generate a net enforceable order to be fulfilled before the civil court. Even if the victim claims the complementation of the indemnification in an ex delicto civil action, the immediate enforcement of the value established in the criminal conviction will be authorized

INTRODUÇÃO

responsabilidade penal tem por objetivo reprimir infrações criminais (atos ilícitos), razão pela qual compete ao Estado, via de regra, a função de impor a sanção penal – ou seja, de reprimir o ofensor (retribuição) e de prevenir a ocorrência de novas infrações, pelo mesmo indivíduo ou por outros indivíduos. Por outro lado, a responsabilidade civil tem a função de reparar danos que, embora tenha um caráter punitivo, ele é meramente acessório – sendo a sua principal função compensatória.

Contudo, um mesmo fato unitário pode gerar uma pluriincidência normativa. 2 Exemplificativamente, a partir de um homicídio, surgem diversas implicações jurídicas, em searas diversas: normas penais sobre o homicídio, normas civis de direito das sucessões (se há herdeiros), normas civis de direito de família (se a pessoa era casada), normas civis de responsabilidade civil para a reparação dos danos, normas previdenciárias, dentre outras.

Em virtude das diferentes funções e natureza que desempenham a responsabilidade penal e civil, a regra é que elas sejam independentes. Sobre o tema, Fernando Noronha3 destaca:

Sendo independentes, pode acontecer que um ilícito criminal não seja ilícito civil, como também pode acontecer o inverso. Assim, o excesso de velocidade é transgressão às leis de trânsito (delito de perigo), mas só passa a ser ilícito civil se der causa a um acidente; a desatenção do motorista que em estacionamento particular causa danos em veículo de outra pessoa não é contravenção punível, mas é ilícito civil. Em regra, todavia, quando há responsabilidade penal também haverá responsabilidade civil; geralmente o ilícito penal gera danos e, portanto, será também fonte de responsabilidade civil.

A análise da ação civil ex delicto pressupõe um estudo interdisciplinar, na medida em que se destina à satisfação do dano que foi produzido pela infração penal. 4 Isso porque, com fundamento em um mesmo ato (ilícito) podem ser exercidas duas pretensões distintas: (i) a pretensão punitiva, que visa à imposição de pena cominada em lei, e (ii) a pretensão de reparação do dano, que foi causado por aquele delito.

Perante o juízo cível, a reparação do dano pode representar a restituição da própria coisa (da res furtiva, por exemplo), o ressarcimento dos danos patrimoniais que a vítima do crime sofreu, ou ainda a reparação por danos não patrimoniais (como danos morais). 5 Entretanto, o desfecho da ação penal pode influenciar a decisão que será proferida no juízo cível, o que leva à conclusão de que há independência entre as duas esferas, mas não de forma absoluta.

PARTE I – INTERDISCIPLINARIDADE

A) BASE LEGAL E LEGITIMIDADE

Muito embora o Código Penal e o Código de Processo Penal possuam dispositivos para regulam a relação entre a ação penal e a ação civil ex delicto, a verdade é que eles trazem o regramento dos efeitos civis da sentença penal irrecorrível, mas não determinam como ocorrerá a reparação perante o juízo cível. Isso porque "a lei processual penal não regulamenta a ação a ser proposta no juízo cível, tendo por causa de pedir o fato criminoso". 6 Por isso, o estudo do tema pressupõe uma análise conjunta do que prevê o Código Penal, Código de Processo Penal, Código Civil e Código de Processo Civil.

O Código Penal, em seu artigo 91, estabelece que a obrigação de reparar o dano causado à vítima é um dos efeitos da condenação penal. 7 O Código de Processo Penal também regula a matéria, estabelecendo, principalmente, que a sentença penal pode constituir título executivo líquido a ser executado pela vítima perante o juízo cível e quais são os efeitos da decisão penal sobre a ação civil ex delicto:

Art. 63. Transitada em julgado a sentença condenatória, poderão promover-lhe a execução, no juízo cível, para o efeito da reparação do dano, o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros.

Parágrafo único. Transitada em julgado a sentença condenatória, a execução poderá ser efetuada pelo valor fixado nos termos do inciso iv do caput do art. 387 deste Código8 sem prejuízo da liquidação para a apuração do dano efetivamente sofrido.

Art. 64. Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, a ação para ressarcimento do dano poderá ser proposta no juízo cível, contra o autor do crime e, se for caso, contra o responsável civil.

Parágrafo único. Intentada a ação penal, o juiz da ação civil poderá suspender o curso desta, até o julgamento definitivo daquela.

Art. 65. Faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

Art. 66. Não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato.



Art. 67. Não impedirão igualmente a propositura da ação civil: I - o despacho de arquivamento do inquérito ou das peças de informação; II - a decisão que julgar extinta a punibilidade; III - a sentença absolutória que decidir que o fato imputado não constitui crime. (g/n)

Por sua vez, o Código de Processo Civil prevê que a sentença penal condenatória transitada em julgado é título executivo judicial, e que a ação cível poderá ficar suspensa até que haja pronunciamento do juiz criminal:

Art. 315. Se o conhecimento do mérito depender de verificação da existência de fato delituoso, o juiz pode determinar a suspensão do processo até que se pronuncie a justiça criminal. § 1o Se a ação penal não for proposta no prazo de 3 (três) meses, contado da intimação do ato de suspensão, cessará o efeito desse, incumbindo ao juiz cível examinar incidentemente a questão prévia. § 2o Proposta a ação penal, o processo ficará suspenso pelo prazo máximo de 1 (um) ano, ao final do qual aplicar-se-á o disposto na parte final do § 1o. Art. 515. São títulos executivos judiciais, cujo cumprimento dar-se-á de acordo com os artigos previstos neste Título: [...] VI - a sentença penal condenatória transitada em julgado. (g/n)

Ainda, o Código Civil também regula a matéria, ao prever que a responsabilidade civil e a responsabilidade criminal são independentes, mas não de forma absoluta: "[a] responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal" (artigo 935).

Pela análise dos referidos dispositivos legais, chega-se à conclusão de que (i) a responsabilidade civil é independente da criminal, mas que (ii) a existência do fato e a autoria não podem mais ser questionadas, se decididas pelo juiz criminal, e (iii) a sentença absolutória no juízo criminal não impede o ajuizamento de ação civil, a não ser em determinados casos que serão abordados na segunda parte deste trabalho

Em virtude dos possíveis efeitos que a sentença penal pode ter sobre a decisão cível, e da possibilidade de suspensão da ação civil ex delicto até que haja pronunciamento do juiz criminal, a demanda civil não será abarcada pela prescrição. Isso porque o prazo prescricional para a ação civil ex delicto apenas terá início a partir do trânsito em julgado da sentença criminal – ainda que a vítima possa optar por ajuizar a demanda cível antes que isso ocorra. Esse é o posicionamento jurisprudencial:

APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL EM ACIDENTE DE TRÂNSITO. ACIDENTE. AÇÃO CIVIL EX DELICTO. TRÂNSITO EM JULGADO DA CONDENAÇÃO CRIMINAL. PRESCRIÇÃO. PRAZO E TERMO INICIAL. A ação penal condenatória teve o seu trânsito em julgado na data de 11-12-2008, tendo a presente demanda sido promovida em 24-03-2009. Portanto, não há falar em prescrição, seja pelo fato de que o prazo prescricional para a ação ex delicto é contado a partir do trânsito em julgado da sentença criminal condenatória, consoante a regra do art. 200 do Código Civil: Quando a ação se originar de fato que deva ser apurado no juízo criminal, não correrá a prescrição antes da respectiva sentença definitiva. Prescrição afastada. Sentença desconstituída. APELAÇÃO PROVIDA.9 (g/n)

Footnote

1 Mestre em Direito Civil pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS). Advogada.

2 BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

3 NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 533.

4 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal: volume 2. 35. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

5 BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

6 BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 203.

7 Art. 91. São efeitos da condenação: I - tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime.

8 Art. 387. O juiz, ao proferir sentença condenatória: IV - fixará valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido.

9 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70069402683. Décima Segunda Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Relator: Guinther Spode, Julgado em 15/09/2016.

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