Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais | vol. 63/2014 | p. 219 | Jan / 2014 DTR\2014\1206

Área do Direito: Civil; Bancário

Resumo: A partir da análise do caso concreto, o presente parecer trata da qualificação do negócio jurídico da cessão de uma pluralidade de créditos litigiosos e sua compreensão sob a ótica dos contratos aleatórios, abordando, inclusive, a garantia da existência dos créditos nesta perspectiva. Distingue os contratos de cessão de crédito, cessão de posição contratual e promessa de liberação.

Palavras-chave: Cessão de crédito - Cessão de posição contratual - Cessão de crédito litigioso - Contratos aleatórios - Promessa de liberação.

Abstract: Upon the examination of a specific case, this legal opinion analyzes the qualification of the assignment of a portfolio of distressed credits and its understanding vis-à-vis the aleatory contracts doctrine, also examining the guarantee of the existence of the credit under such perspective. This legal opinion differentiates the assignment of credit agreements from the subrogation in a contractual provision and the promise of release.

Keywords: Assignment of credit - Subrogation in a contractual position - Assignment of distressed credits - Aleatory agreements - Promise of release.

Sumário:

1.Consulta - 2.A carta de intenção e os contratos de cessão de crédito - 3.Cessão de crédito, cessão de posição contratual, cessão de crédito litigioso e promessa de liberação - 4.O enquadramento jurídico do negócio entabulado - 5.Análise dos contratos - 6.Respostas aos quesitos

1. Consulta

O Banco A, por seus ilustres advogados, consulta-nos a respeito de dois contratos de cessão de crédito celebrados entre o Banco B e empresa securitizadora ("Cessionária"), nos quais o Banco A figurou como interveniente. Esses contratos de cessão de crédito serão a seguir designados "Contratos de Cessão de Crédito" e, por vezes, simplesmente "Contratos", cumprindo notar que, neste parecer, serão sempre citados em conjunto por apresentarem teores substancialmente idênticos.

O Banco B, que à época da celebração dos Contratos de Cessão de Créditos era controlado pelo Banco A, veio a ser posteriormente incorporado a este último, que assim o sucedeu nos Contratos. O Consulente esclareceu a matéria sob consulta mediante circunstanciada exposição dos fatos, apresentou documentos de interesse para o deslinde da questão e formulou os quesitos que serão respondidos ao final deste parecer, após algumas considerações gerais, com que os signatários julgam conveniente iniciar seu trabalho.

2. A carta de intenção e os contratos de cessão de crédito

Neste parecer, designa-se "Carta de Intenção" o documento mediante o qual o Banco A outorgou à controladora da Cessionária opção para a compra de um portfólio de créditos vencidos e não pagos, de titularidade do Banco B ("Créditos"). Do exercício dessa opção, resultaram os Contratos de Cessão de Crédito.

A Carta de Intenção, no seu corpo e nos anexos, já estabelecia, com o nível de detalhes próprio de um contrato preliminar, os termos dos Contratos de Cessão de Crédito, caso a opção fosse exercida. Nas linhas a seguir, focalizamos os pontos da Carta de Intenção e dos Contratos de Cessão de Crédito que consideramos importantes para a solução das questões postas na consulta. Da Carta de Intenção, cumpre considerar o seguinte:

  • no cabeçalho, os Créditos são qualificados de distressed;1
  • ; no item 1, a controladora da Cessionária declara que já realizara uma due diligence preliminar (a "Primeira Due Diligence") antes de o Banco A ser declarado vencedor da licitação da venda do controle do Banco B, e reconhece que tomou conhecimento de que os Créditos poderiam presentemente ou no futuro ser objeto de litígios judiciais, com possibilidade de os resultados desses litígios serem adversos às pretensões do Banco B;
  • no item 2, como resultado da Primeira Due Diligence, bem como da análise e avaliação dos Créditos, a controladora da Cessionária concluiu que o valor indicativo dos Créditos correspondia a 2,4695% do valor nominal atualizado ("Legal Balance") de certos créditos listados no Anexo B da Carta de Intenção e 1,4166% dos demais;
  • no item 3, prevê-se a realização de uma segunda due diligence ("Additional due diligence") pela controladora da Cessionária, com a cooperação do Banco B, tendo por objetivo estabelecer o portfólio definitivo dos Créditos e os respectivos valores ("Final Portfolio");
  • no item 4, a controladora da Cessionária se declarou ciente de que o "Final Portfolio" seria composto de Créditos baixados do ativo e lançados na conta créditos compensados contra a provisão, no balanço do Banco B;
  • no item 5, o Banco A conferiu à controladora da Cessionária uma opção irrevogável de compra dos Créditos por preço determinável de acordo com os critérios fixados na Carta de Intenção;
  • no item 6, foram estipulados os critérios para a determinação do preço da cessão;
  • no item 7 e em anexo (Exhibit A), foram estipuladas cláusulas e condições a serem incluídas nos Contratos de Cessão de Crédito, dentre os quais se destacam as seguintes:

    • nem o Banco A nem o Banco B serão obrigados a reembolsar a Cessionária por honorários ou outras perdas ou danos incorridos em consequência dos litígios referentes aos Créditos; e
    • a Cessionária deverá substituir o Banco A e o Banco B nos processos judiciais relativos aos Créditos e, no caso de não obter aprovação para a substituição, habilitar-se como assistente e reembolsar o Banco A e/ou o Banco B de todos os gastos que tiverem em decorrência dos litígios. Nos Contratos de Cessão de Créditos, cumpre focalizar especialmente as disposições a seguir resumidas:
  • os Créditos são cedidos, a partir da data de celebração dos Contratos, no estado em que se encontram, abrangendo os contratos, direitos, deveres, obrigações, garantias, interesses, causas de pedir, documentação etc., bem como os pagamentos e recebimentos a partir da data em que foi firmada a Carta de Intenção (a Cut-off Date);
  • o Cedente garante a existência dos Créditos na data da celebração dos Contratos, ficando eximido de responsabilidade pela solvência dos devedores, não sendo, assim como o Banco A, considerado devedor ou coobrigado dos obrigados diretos pelos Créditos;
  • o Cedente transfere à Cessionária todos os seus direitos, deveres, obrigações, titularidade e interesses nos Créditos;
  • ; a documentação relativa aos Créditos, a ser entregue pelo Cedente à Cessionária, incluirá todos os documentos necessários à sua adequada administração, cobrança, execução e transferência; de acordo com a legislação brasileira, assegurando o Cedente que tal documentação é suficiente para a cobrança dos Créditos de acordo com seus termos;
  • os Créditos estão registrados como vencidos e não liquidados de acordo com a legislação e regulamentação tributárias e bancárias e os princípios de contabilidade geralmente aceitos no Brasil;
  • caso uma decisão judicial declare que um crédito não pode ser cobrado de acordo com a lei, ou reduza a taxa de juros pactuada, ou iniba a aplicação de juros compostos, o Cedente pagará à Cessionária os percentuais previstos na cláusula 4.2 sobre a diferença entre o valor declarado nos anexos aos Contratos e o valor que a decisão judicial declarar que pode ser cobrado;
  • nem o Cedente nem o Banco A reembolsarão a Cessionária de quaisquer perdas e danos oriundos de litígios relativos aos Créditos, nem honorários advocatícios ou outras despesas e desembolsos que a Cessionária tiver em tais litígios;
  • a Cessionária assumirá todas as ações judiciais de cobrança dos créditos já iniciadas pelo Cedente, assim como todas as ações presentes e futuras dos devedores contra o Cedente, relacionadas aos créditos;
  • ; a Cessionária adotará as providências legais necessárias para substituir o Cedente como autor ou réu nas demandas relacionadas aos Créditos ou, se for o caso, para atuar como assistente em tais ações, ficando certo que a Cessionária responderá em face do Cedente pelos efeitos da sentença judicial e reembolsará o Cedente pelo que este for condenado a pagar, no caso de a substituição não se concretizar.

Identificadas as disposições contratuais, passe-se à análise da questão.

3. Cessão de crédito, cessão de posição contratual, cessão de crédito litigioso e promessa de Liberação

Os arts. 286 e ss. do CC/2002 (LGL\2002\400) disciplinam a cessão de crédito como contrato bilateral mediante o qual o credor se faz substituir por um terceiro (o cessionário) na sua posição na relação obrigacional creditícia. Com efeito, a relação jurídica objeto da cessão encerra em cada polo um direito e uma obrigação; mediante o contrato de cessão de crédito, o direito de crédito constante da posição do credor na relação é destacado e transferido ao cessionário.2

O Código Civil de 1916 (LGL\1916\1) contemplava apenas a cessão de crédito e silenciava a respeito do negócio jurídico destinado a transferir a obrigação que o acompanha na mesma relação. Todavia, a transferência de posição devedora em uma relação contratual já era pacificamente admitida pela doutrina e a jurisprudência no direito anterior. O Código Civil (LGL\2002\400) de 2002 tornou expressa a admissibilidade desse negócio, que denominou assunção de dívida, nos arts. 299 e ss.

Parafraseando a definição de cessão de crédito, é possível definir a cessão de dívida como o contrato bilateral, mediante o qual o devedor faz substituir-se por um terceiro (o cessionário) na sua posição na relação obrigacional que criou o crédito.

Como se disse, na cessão de crédito, apenas o crédito é objeto do negócio, permanecendo a obrigação no patrimônio do cedente. Por seu turno, na cessão de dívida, apenas a obrigação é transferida, permanecendo no patrimônio do cedente o crédito, se houver.

Evidentemente, se é possível a cessão apenas do crédito em um ato e da dívida em outro, possível também será a contratação, em um só ato, da cessão simultânea do conjunto de créditos e débitos originados de uma relação contratual. Temos então uma cessão de posição contratual, também chamada cessão de contrato.

Nas três hipóteses acima referidas, as cessões provocam alterações meramente subjetivas no contrato original. Por isso, na cessão de crédito, basta a notificação do devedor para que fique certo sobre a quem deve efetuar o pagamento e de quem receber quitação. Porém, na cessão de dívida, exige-se a anuência do credor, pois se reconhece o seu justo interesse em que o devedor original não seja substituído por um cessionário cuja idoneidade financeira não tenha sido por ele, credor, aprovada.

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Footnotes

1 O tema do objeto da cessão de crédito em foco será tratado adiante, mas convém notar, desde logo, que a definição de distressed sale dada pelo Black's Law Dictionary explica o emprego do termo distressed pelas partes da Carta de Intenção: "a form of liquidation sale (e.g., 'going out of business sale') in which the seller receives less for his goods than he would under normal selling conditions" Black's Law Dictionary. West Publishing Co. 6.th ed., p. 475.

2 O crédito é direito subjetivo patrimonial, considerado bem móvel pelo art. 83, III, do Código Civil (LGL\2002\400), podendo, portanto, ser objeto de alienação.

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