O começo de milênio trouxe uma impressão de desconforto. As leis, e os direitos, incharam para se transformar em condição primeira de qualquer relação, em substituição ao bom senso e à confiança, se é que se pode chamar de relação a imposição de perspectivas pessoais sem contemplação de outros. Isso leva à situação paradoxal de excesso de leis, conjuntamente com a impressão geral de que são poucas e não efetivas, e que a solução para isso só pode vir de interpretações criativas dadas às leis que temos, ou de novas leis ainda mais rigorosas.

É nesse cenário que precisa ser feita reflexão sobre o regime jurídico dos empréstimos por instituições financeiras a sociedades do mesmo grupo econômico ou a pessoas físicas a elas ligadas, sejam sócios, administradores ou parentes deles.

Esses empréstimos são há muito vistos com desfavor pela legislação. A razão para o desfavor é que as instituições financeiras são intermediárias dos recursos poupados pela população de um país, devendo, em interesse próprio, encontrar os mais eficientes agentes econômicos para recebê-los como empréstimos e financiamentos. Na teoria econômica, quando mais eficientes nisso, mais próspera a economia dos países em que operam. Instituições pouco eficientes, reféns de seus clientes problema ou do interesse particular de outros negócios do próprio controlador, terminam por se precipitar em crise e esterilizar os recursos poupados pela sociedade em geral, empobrecendo o país em que operam.

A prática mostra isso, e não são poucas as instituições financeiras que fracassaram por sua relação incestuosa com pessoas jurídicas ou físicas ligadas, frequentemente empresas do mesmo grupo. Para citar um caso seminal, o Banco do Commercio e Indústria do Brasil, do Barão de Mauá, naufragou no século XIX depois de beneficiar fortemente os empreendimentos industriais e de infraestrutura de seu controlador. Com os capitais empregados em projetos de longo prazo, não sobreviveu a uma corrida bancária.

Pouco depois do movimento de 1964, a Lei de Reforma Bancária, do mesmo ano, passou a considerar tais empréstimos crime financeiro. Quando uma nova lei sobre crimes financeiros foi feita, algo às pressas e com carência de técnica, em meados da década de 80, para dar conta das novas pressões sociais decorrentes da democratização, as penas criminais para empréstimos a pessoas ligadas à instituição mutuante foram agravadas.

Corte-se a cena para o presente. A recente Lei nº 13.506, de 13 de novembro de 2017, introduziu alterações e inovações no regramento no Sistema Financeiro Nacional. Entre elas, duas exceções importantes à regra de criminalização dos empréstimos a pessoas ligadas.

A primeira é que deixam de constituir violação as operações realizadas em condições de mercado quanto a prazos, taxas, garantias, etc. Pela segunda, o Conselho Monetário Nacional (CMN) deverá disciplinar as novas regras, inclusive o que seja operação de crédito e o nível de participação da instituição financeira que é condição para que uma sociedade seja considerada ligada à instituição financeira, e portanto proibida de receber empréstimos dela.

Essas duas normas, sensatas ou não, precisam ser comparadas com tradicional princípio, constante do Código Penal Brasileiro, de que a punibilidade de um crime se extingue quando a lei muda e deixa de considerá-lo um delito.

Isso implica que todas as ações em curso versando sobre crime de empréstimo a pessoa ligada devem ser imediatamente encerradas, com absolvição sumária do réu. O mesmo se aplica a qualquer condenação já definitiva, que deve deixar de produzir efeitos, inclusive relativos a encarceramento, com imediata libertação dos condenados.

A razão disso é evidente para casos em que a discrepância do empréstimo em relação a condições de mercado não esteja comprovada, pois afinal tais operações passam a ser lícitas.

Mas isso é dizer pouco, pois a lei nova entrou em vigor em 14 de novembro, revogando as regras anteriormente vigentes. Só que ao fazê-lo nada pôs no lugar, pois as regras novas dependem ainda de complementação pelo Conselho Monetário, em questões essenciais como o que seja operação de crédito e o que seja ligação societária. Portanto, não têm ainda concretude suficiente para serem aplicadas e hoje a proibição a empréstimos a pessoas ligadas não mais existe.

Mesmo que essas regras do Conselho Monetário venham a ser editadas no futuro, isso em nada muda a situação. Por um interregno o empréstimo deixou de ser criminalizado, e assim é a lei nova mais benéfica que deve ser aplicada, ainda que a inexistência de repressão penal tivesse tido hipoteticamente vigência por período limitado. Essa lei absolve.

O que fazer nesse cenário, corrigir a lei "errada" através de interpretação judicial que elimina a garantia penal de extinção de punibilidade a despeito de existir norma mais benéfica nesse sentido, como mostramos? E isso para "justiçar" os acusados ou condenados, afinal tudo que conta é o resultado de curto prazo quando não se acredita muito no futuro? Ou refletir que o Direito se aplica na medida certa, com previsibilidade, e que o inchaço no seu uso mais não faz do que acirrar conflitos e desvalorizar instituições?

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