Resumo: O presente artigo busca analisar as origens das sociedades de economia mista, a regência constitucional da intervenção do Estado no domínio econômico, a governança corporativa dessas sociedades e, fundamentalmente, quais os legítimos limites da subordinação dos interesses das mesmas ao interesse público.

Palavras-chaves: Sociedade Anônima ou Companhia. Sociedade de Economia Mista. Intervenção do Estado no Domínio Econômico. Administração Indireta. Interesse Público Primário e Secundário. Limites à Subordinação ao Interesse Público. Governança Corporativa na Sociedade de Economia Mista.

1. Introdução: origens das sociedades de economia mista: direito comparado e direito brasileiro.

A doutrina costuma vincular a origem das sociedades de economia mista – onde há a associação entre capitais públicos e privados – às companhias de comércio coloniais da Holanda e Inglaterra, no século XVII, mais remotamente à Companhia Holandesa das Índias Orientais, criada no início do século, em 1602. Ali, pela primeira vez, limitou-se a responsabilidade de todos os sócios ao preço de emissão das ações subscritas. Mais ainda, foram conferidas características às ações que representavam o capital social em tudo similares às dos títulos de crédito. Isso mediante a autorização da incorporação dos direitos de sócio a títulos corpóreos e de livre circulação na economia, denominados ações. Estabeleceu-se a associação entre os capitais públicos – das coroas da época – aos capitais privados disponíveis na economia – armadores, comerciantes, senhores feudais e outros súditos (VENÂNCIO FILHO, 1968: 373 e ss.) 1.

Enquanto Holanda e Inglaterra, em momentos sucessivos, optaram pela associação entre capitais privados e atuação estatal, Portugal e Espanha tomaram o caminho da política do monopólio estatal para o desenvolvimento daquela era comercial, utilizando sociedades colonizadoras. Há ainda as companhias francesas e suecas, criadas na mesma época ou um pouco depois.

Já no século seguinte à criação das sociedades anônimas (XVIII), verificaram-se as primeiras fraudes, na Inglaterra, com o escândalo da South Sea Company, e na França, com a quebra do Banco Real. Tanta gente foi arruinada e tanto capital perdido que os escândalos devastaram o novo tipo societário e provocaram seu ocaso e banimento por longos anos (LAMY FILHO e BULHÕES PEDREIRA, 2009: 5 e ss.) 2.

A retomada e livre criação das sociedades anônimas, para impulsionar a Revolução Industrial, ocorreram apenas no século XIX, em 1811 nos Estados Unidos (Estado de Nova York), em 1844 na Inglaterra, e em 1867 na França. No Brasil, a livre constituição das sociedades anônimas produziu efeitos no fim do século, em 1882 (Lei nº 3.150).

A participação direta do Estado na economia e em parceria com a iniciativa privada, no desempenho de atividades empresárias, pode ser identificada em diversos ordenamentos jurídicos. Não há, no entanto, completa identidade com a modalidade de sociedade de economia mista estabelecida no sistema brasileiro, o que a torna assim única e singular.

Na Alemanha, Argentina, Eslovênia e França, dentre outros, segundo recente estudo do programa de iniciação científica do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro3, há a possibilidade da intervenção do Estado na economia mediante a associação entre capitais públicos e privados, mas a constituição dos respectivos veículos nem sempre requer a forma de sociedade anônima ou autorização legal e atendimento a relevante interesse coletivo, e nem sempre subordina a empresa, de modo preponderante, ao direito privado, como no caso brasileiro. Na nossa situação, há maior rigidez no modelo, a justificar a participação do Estado na economia, através de entidade de sua administração indireta.

Em Cuba – que vale citar pela significação em regime socialista, de economia centralizada –, como se verificou em conferência realizada em maio de 2016 entre a Universidade da Flórida e a Universidade de Havana4, as sociedades de economia mista são instrumento de investimentos externos naquele País (no atual movimento de reinserção de Cuba na economia internacional, com o iminente – ou ao menos esperado – fim do embargo dos Estados Unidos, após o restabelecimento de relações diplomáticas entre os dois países, nos governos Raúl Castro e Barack Obama), mediante associação entre o Estado cubano e o investidor privado estrangeiro. Também diferente do que ocorre aqui, em que a associação se dá entre investimento estatal interno e geralmente investimentos privados, de origem interna ou estrangeira, podendo até mesmo comportar investimento estatal externo (capitais chineses no pré-sal, a título de exemplo).

Entre nós foi histórica a criação do Banco do Brasil, em 1808, já naquele tempo espécie de sociedade assemelhada à companhia anônima de economia mista – como a conhecemos hoje –, criada com a vinda do Príncipe Regente, D. João de Bragança, em fuga dos exércitos de Napoleão, cuja corte veio a se abrigar no Brasil em tal época, bastante anterior ao Código Comercial brasileiro de 1850 e à liberdade de constituição de sociedades anônimas no País (Lei 3.150/1882). Não deixava de ser sociedade assemelhada à de economia mista, porque possuía como acionistas privados minoritários banqueiros portugueses, associados à Coroa, e atuava como banco comercial. Atuava também, de outro lado, como emissor de moeda e fez as tarefas de banco central até a criação deste já no século seguinte. O Banco do Brasil já traz em si toda natural tensão entre público e privado, entre ação estatal e exploração privada da economia. Entre regulação e atividade competitiva.

O mesmo ocorreu mais de um século após, na década de 40 do século XX, no primeiro governo do presidente Getúlio Vargas, com o início da industrialização do Brasil, pela construção e instalação da Companhia Siderúrgica Nacional – CSN, sociedade de economia mista, conquistada pelo País como resultado da nossa participação na II Grande Guerra, primeira siderúrgica integrada estabelecida em nosso solo. A negociação entre os governos brasileiro e americano envolvendo a criação da CSN se materializou nos chamados Acordos de Washington e os fundos americanos originaram-se do Eximbank. A privatização da CSN encerrou forte polêmica nacionalista e foi concretizada em 1993, no governo Itamar Franco.

Como parte do mesmo projeto de desenvolvimento econômico que visava à industrialização do País, foi criada, em 1942, a sociedade de economia mista denominada Companhia Vale do Rio Doce – CVRD. No contexto da aproximação do Brasil com as potências aliadas na II Guerra Mundial, a CVRD incorporou o patrimônio de jazidas da Itabira Iron Ore Company, mediante gestões diplomáticas com o governo britânico. Na década de 50, a CVRD já consolidara sua posição no mercado mundial, e expandiu-se nas décadas seguintes com a construção e exploração do porto de Tubarão, nas cercanias de Vitória (ES). Com atuação concentrada nas jazidas de minério de ferro em Minas Gerais, a CVRD, anos mais tarde, passou a operar também em Carajás, no sul do Pará. Sua privatização, nos anos 90, foi das mais polêmicas, tendo em vista o histórico nacionalista envolvendo a propriedade do subsolo pelo Estado e a vedação ao controle de capitais estrangeiros nas atividades de mineração, só suplantada pela Emenda Constitucional nº 6, de 15 de agosto de 19955.

Houve também, na década de 50, a inauguração da nossa atividade de exploração do petróleo, com o surgimento do monopólio estatal – decorrente de acalorados debates de então entre forças políticas nacionalistas – levado a efeito por uma sociedade de economia mista, a Petróleo Brasileiro S.A. – Petrobras, titular do monopólio até a década de 90 – que passou às mãos do Estado – e participante da livre competição, nos dias de hoje, ao menos em certa medida, até que modificadas e aprimoradas a legislação do pré-sal e as extensas e intrínsecas relações entre a Petrobras e o governo brasileiro. Essas contradições entre público e privado, atividade reguladora e concorrência permearão a análise deste trabalho.

A criação da Eletrobras, companhia de economia mista, foi também proposta, em 1954, no segundo governo do presidente Getúlio Vargas, para desenvolvimento da energia elétrica no País. O projeto, porém, sofreu forte oposição e a turbulência política da época e só foi aprovado após sete anos em tramitação no Congresso, em 25 de abril de 1961. A instalação da empresa ocorreu em 11 de junho de 1962, já sob a presidência de João Goulart.

Vale citar ainda o Instituto de Resseguros do Brasil – IRB, sociedade de economia mista atípica, criada anos antes, na década de 30 e consolidada na década seguinte, com o objetivo de desenvolver as atividades de resseguros e fomentar o segmento de seguros no Brasil – à época o resseguro era contratado no Reino Unido e alhures e o seguro dominado por empresas internacionais –, e que até recentemente atuou como órgão regulador e sociedade monopolista, com o controle da União Federal e participação variável das sociedades seguradoras nacionais. Já no final do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, na preparação da privatização da atividade, o IRB foi transformado em sociedade de economia mista típica e perdeu seus poderes regulatórios, transferidos à Superintendência de Seguros Privados – Susep, deixando de atuar como monopólio, em razão da abertura do setor de resseguros à competição.

Finalmente, dentre tantas situações especiais, cumpre fazer referência à Rede Ferroviária Federal S.A. – RFFSA, outra companhia de economia mista, criada na década de 50, em 1957, para abrigar as atividades ferroviárias brasileiras, então fragmentadas em diversas ferrovias regionais de natureza distinta, cobrindo boa parte do território nacional, e que sucumbiu por graves problemas de gestão, tendo suas atividades privatizadas na década de 90.

No programa brasileiro de privatização, tanto federal como estadual, a partir das décadas de 80 e 90, foram privatizadas atividades (no todo ou em parte) e sociedades de economia mista de diversos setores, como: siderurgia (CSN, Usiminas, Cosipa, Companhia Siderúrgica de Tubarão – CST, Açominas, etc.); petroquímica e fertilizantes (Petroquisa, etc.); indústria de aeronaves e jatos comerciais (Embraer, etc.); telefonia móvel e fixa (Telesp, Telerj, etc.); gás (CEG, CEG-Rio, etc.); energia elétrica – produção, transmissão e distribuição (Eletropaulo, Light, etc.); mineração (Vale S.A., ex-Companhia Vale do Rio Doce – CVRD, etc.); sistema financeiro e de resseguros (com destaque para os bancos dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro – Banespa e Banerj, e as atividades do IRB, estas antes monopolistas); transporte ferroviário de cargas e passageiros (RFFSA, etc.); água e saneamento ( hoje ainda incipiente); portos e aeroportos (Galeão, Guarulhos, etc.); rodovias e pontes (ponte Rio-Niterói, rodovia Castelo Branco-Raposo Tavares, dentre várias outras)6.

Mas a iniciativa e o capital do Estado eram essenciais – e ainda serão - ao desenvolvimento de várias das citadas atividades, e de outras na economia, pela escassez de capital privado ou pela necessidade ditada por políticas públicas.

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